sábado, 16 de julho de 2011

A seita


Antenor casou-se apaixonado. Apaixonado e virgem. Tinha 22. Desde os quinze cultivava uma plantinha no jardim secreto de Dora, vizinha de porta no sempre mesmo prédio em que moravam. De Doralice não se pode dizer o mesmo; era de paixões fugazes, e de um currículo sentimental bastante extenso. Fato é que Antenor enveredou no labirinto azul dos olhos da moça, e não houve Teseu, nem novelo que o salvasse.

“É doce morrer no mar”.

O rio do tempo seguiu seu curso, e o casal sua vida. Enquanto Antenor fazia trapézio nos – agora - fortes galhos daquela plantinha; Doralice, mesmo inocente da metáfora, a trazia num pequeno vaso de argila. O marido era bem-humorado, afável, e competente, assim no trabalho como na cama. A mulher encenou a esposa feliz e prendada até o dia em que se deu algo.

Sabe um desses esbarrões de cinema, ou novela?, quando os dois se abaixam simetricamente juntos numa tentativa de resgatar o que foi ao chão, e simetricamente juntos também se levantam, até que, bem perto de ficarem de pé novamente, os olhos se procuram, e se encontram, e demoram, moram um no outro, até que algo os desperta, e ouve-se uma desculpa qualquer entre amarelos sorrisos.

Era uma sexta-feira, no supermercado.

Dora aumentou o cigarro. Carecia de mais tempo à janela nas madrugadas. Quando juntos, Antenor fazia amor, Dora a feira. A alcova movimentada, aos poucos, foi-se transformando numa biblioteca mal freqüentada. Dois leitores silentes sob o abajur, entre cigarros e o leve mastigar de páginas virando.

“Os deuses vendem quando dão”.

Antenor se abriu com o Saldanha, seu melhor amigo. E logo começou a beber. Mudou a rota “trabalho-casa-trabalho”. Incluiu o bar. Dora ignorava o cheiro de álcool, e fazia frustrar toda e qualquer tentativa do marido. Nos fins de semana, a bebedeira mudava apenas de intensidade. Era maior. Não tardou a ser demitido por conta de falhas graves no trabalho. Veio a maconha. Veio a coca, e junto um farrapo humano jogado no sofá da sala. Logo cedo, fazia a rota casa-bar caminhando de rosto erguido e altivo. No sentido contrário, via-se um bêbado vituperando em todas as direções, ou, um cadáver vivo, sendo arrastado por estranhos. Enquanto isso, um rosto impassível assistia àquilo da janela sob o fumo esvoaçante do cigarro.

Foi numa sexta-feira, no bar.

Antenor parou, paralisou completamente. Seus olhos vidrados foram na direção da rua, como quem via algo extraordinário. O garçom costumeiro disse ter “se arrepiado todo” com o estado do cliente costumaz. O homem levantou-se como autômato, ignorou tudo e todos; cortou em diagonal o salão do bar, ganhou a calçada, atravessou a movimentada avenida, e caiu de joelhos frente a um poste. Abraçou-o com toda a força que lhe foi possível, e gritou entre lágrimas: “Jesus, meu pai, eu te aceito!!!”, e gritava, e pulava, e abraçava o cidadão engravatado com uma bíblia sob a axila. No dia seguinte, sóbrio como um monge, cruzou o portal da primeira igreja genérica que encontrou, e como um foragido, “entregou-se a Jesus”.

Dora o viu sair para o primeiro culto. Cética que era, só cria no que via, riu por dentro, e foi à feira. Os vizinhos, já havia muito tempo, também não criam naquele teatro pavoroso. Da mesma janela, a esposa assistiu às idas e voltas do marido engravatado e sua “bíblia-muleta”. Quinze dias bastaram. Deu-se início ao sermão doméstico. Antenor escolhia um trecho e declamava com sua voz impostada na direção da mulher entediada. Ao final, completamente suado, discorria um rol de vantagens em “aceitar Jesus”. Dora, naturalmente, escutava tudo sem ouvir, e por isso, era irredutível.

Na medida em que passava o tempo, e o insucesso da sua empresa só crescia, Antenor aumentava a dose, sempre no afã de trazê-la para o seu “rebanho”, o único – segundo ele – detentor da felicidade plena. Num último recurso, banhado pelas febres do desespero, o “pastor” radicalizou. Resolveu que em todos os diálogos do casal, independente de temas, seria inserida, em voz baixa, uma frase ao final: “aceite Jesus...”. Também espalharia pequenos adesivos em locais estratégicos da casa com a mensagem, digamos, “sub-liminar”. Por fim, como uma chave-de-ouro, um pequeno “mantra” noturno foi adotado antes de dormir.

Dora resistiu até certo domingo, quando flagrou a frase estampada numa toalha de rosto:
“Puta que o pariu!!!” - berrou com muita força bem no meio da sala para um Antenor assustado.

“Dorinha, querida... não fale palavrões!” - falou em tom normal, e já ia discorrer as mazelas que acometem àqueles que profanam o próprio lar.

“Profanar, profanar!! Quer saber? Eu quero que você se fôda!! Eu não agüento mais essa vida de merda!!, entendeu? Eu disse: foda-se, Antenor!! – berrou a ponto de ficar vermelha.

“Dora, você só precisa aceitar Je...”

“Nãããão queroooooo, páraaaa, por favor!!! Respeite a minha escolha, caralho!!! – se descabelando.
Correu para o quarto, entre o “possessa de ódio” e o “feliz da vida”, arrastou tudo que era seu, jogou numa bolsa, e correu para a porta, porém, antes de sair, deu uma enorme “banana” para um Antenor pasmo:
“Eu disse foda-se, Antenor!!” – e gargalhou.
Cena em “slow motion”:

Saiu do prédio às gargalhadas; louca e feliz. Olhou para trás por um segundo, e, no momento em que se voltou para seguir em frente, deu-se um daqueles esbarrões de cinema, ou novela; quando os dois se abaixam simetricamente juntos numa tentativa de resgatar o que foi ao chão, e simetricamente juntos também se levantam, até que, bem perto de ficarem de pé novamente, os olhos se procuram, e se encontram, e demoram, e moram um no outro, até que algo os desperta, e ouve-se uma desculpa qualquer entre amarelos sorrisos:
“Oi, qual o seu nome?” – mão estendida, e voz baixa.

“Dora, Doralice...” – sorriso tímido.

“Antonio, Antonio de Jesus...” – sorrindo.




Um comentário:

  1. Querida(o) amiga(o). Estou fazendo uma Campanha de doações pra ajudar os jovens rapazes que estão internados no Centro de Recuperação de Dependentes Químicos onde meu filho está interno também.Lá tem jovens que chegam só com a roupa do corpo,abandonados pela família. Eles precisam de tudo:roupas masculinas,calçados,sabonetes,toalhas,pasta de dentes,escovas de dentes,de um freezer, Roupas de cama,alimentos. O centro de recuperação sobrevive de doações,são mais de 300 homens internos.Eles merecem uma chance. Quem puder me ajudar pode doar qualquer quantia no Banco do Brasil agência 1257-2 Conta 32882-0

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